Filiação: conceito, reconhecimento e formas
A filiação é muito importante para o direito de família, uma vez que a partir desta relação jurídica que se formam as famílias. Com a constatação da filiação muitos são os efeitos deste reconhecimento, sendo que o reconhecimento pode ser voluntário ou ainda, judicial por meio de uma investigação de paternidade ou maternidade.
Atualmente também é válido mencionar as evoluções no conceito de família que decorrem dos meios de filiação, que foram se adequando a nova realidade social, como é o caso da paternidade socioafetiva e da multiparentalidade. O que ficará claro no decorrer do presente artigo é o fato de a filiação não decorrer apenas da consanguinidade, mas também de outros institutos.
O que você verá nesse artigo:
Conceito
Nos termos do autor Flávio Tartuce, tem-se como filiação a relação jurídica oriunda da consanguinidade ou outra origem, que é estabelecida especialmente entre ascendentes e descendentes em primeiro grau, ou seja, pais e filhos.
Importante mencionar que a Constituição Federal de 1988 foi um marco histórico quando se fala em filiação uma vez que consagrou em seu artigo 227, §6º a igualdade de tratamento entre filhos legítimos e ilegítimos. Veja:
“Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Alinhado a este princípio o artigo 1.596 do Código Civil foi claro ao tratar da igualdade entre os filhos, replicando o dispositivo constitucional. Foi necessária tal reafirmação infraconstitucional, tendo em vista que até a promulgação da Constituição Federal de 1988 havia evidente repulsa aos filhos ilegítimos, além da condição subalterna dos filhos adotivos.
Já o Estatuto da Criança e do Adolescente busca a proteção integral do menor, ao versar quanto ao direito personalíssimo ao reconhecimento da origem genética, de forma a inexistir a vínculo parental presumido. Assim estabelece o artigo 27 “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.
Atualmente na legislação há previsão das chamadas filiação matrimonial, sendo a que tem origem na constância do casamento dos pais, com o casamento inclusive anterior à concepção do filho. Portanto, nestes casos há a chamada presunção relativa. Sendo a presunção relativa, é possível que haja a ação negatória de paternidade ou maternidade.
E de outro lado a filiação não matrimonial decorrente de relações extramatrimoniais, classificados, conforme elenca Maria Helena Diniz, em naturais quando não havia nenhum impedimento matrimonial e os espúrios, sendo a filiação oriunda de união que havia impedimento matrimonial.
Feitas estas observações que demonstram grande evolução no ordenamento jurídico brasileiro ao tratar da filiação, passa-se agora ao reconhecimento desta relação.
Reconhecimento da Filiação
Se refere ao ato de declarar a filiação, de forma a estabelecer o parentesco. Portanto, declarado o fato, junto a ele ficam as consequências, sendo que independente da forma de reconhecimento, suas consequências são as mesmas.
Ressalta-se que a partir do reconhecimento da filiação, este fato gera efeitos de ordem patrimonial e pessoal, sendo eles:
- Poder familiar – criar, educar, dever de alimentar, etc;
- Direito de convivência;
- Guarda;
- Direito de visitas;
- Pensão alimentícia;
- Direitos sucessórios;
Com essa breve introdução passa-se a análise de cada modo de reconhecimento.
Voluntário
O meio voluntário de reconhecimento é aquele espontâneo, em que o pai ou a mãe revela o vínculo que o liga ao filho. Se caracteriza por ser um ato unilateral, pessoal, irretratável, formal e de livre vontade.
Após expor de maneira formal o reconhecimento voluntário cabe ao filho o consentimento, conforme o Código Civil:
Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.
Ademais, em relação a guarda do filho reconhecido, o artigo 1.612 estabelece que “O filho reconhecido, enquanto menor, ficará sob a guarda do genitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram e não houver acordo, sob a de quem melhor atender aos interesses do menor”.
Ao tratar do modo voluntário de reconhecimento da filiação, é importante mencionar os filhos aos quais o Código Civil disciplina a presunção de vínculo de filiação, na constância do casamento em seu artigo 1.597:
- Nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal – justifica-se em razão do período natural de gestação.
- Nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento – este prazo mais dilatado refere-se à possibilidade de por exemplo a concepção ter ocorrido no último dia antes da dissolução do vínculo conjugal;
- Havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido – entende-se como aquela em que é utilizado material genético de ambos os cônjuges.
- Havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga – se presume, pois o material genético ter sido obtido pela participação de ambos os cônjuges.
- Havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido – se refere a inseminação em que é utilizado material genético de terceiro.
O Código Civil a estima tanto a presunção de forma que mesmo após o falecimento ou fim da união, permanece a presunção, conforme bem pontua os autores Palbro Stolze Gagliano e Rodolfo Mário Veiga.
A legislação ao se referir aos filhos havidos fora do casamento, diante do reconhecimento voluntário de filiação, tal ato é irrevogável podendo ser feito:
- No registro do nascimento;
- Por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
- Por testamento;
- Por manifestação direta perante o juiz.
Ressalta-se que o reconhecimento pode se dar mesmo antes do nascimento do filho, ou, ainda, posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes, conforme preceito do parágrafo único do artigo 1.609 do Código Civil.
Judicial
Já a via judicial é muitas vezes mais conturbada e demorada, uma vez que não há reconhecimento espontâneo diante das dúvidas e até mesmo resistência. Assim, é frequentemente concretizada diante da ação de investigação de paternidade ou maternidade.
Tal ação se caracteriza por ser uma postulação imprescritível, ou seja, a qualquer tempo, sendo a legitimidade ativa, que se refere a quem pode ajuizar, o alegado filho ou o Ministério Público.
Já a legitimidade passiva, será o investigado, sendo o pai ou mãe, ou, ainda, em caso de investigação após a morte, os herdeiros.
Assim, em linhas gerais, ao ajuizar a ação será o investigado citado para ter a oportunidade de apresentar defesa, sendo designada audiência preliminar para eventual acordo. Sem êxito passa o processo para a fase de produção de provas, sendo elas a testemunhal, posse do estado de filho, exame por fotografia, exame de sangue para análise do tipo sanguíneo e a forma mais conhecida que é o exame de DNA.
Nesse ponto, cumpre destacar o que refere o artigo 2º da Lei 8.560/92;
Art. 2o-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos.
§ 1º. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório.
Em relação a recusa, recomendo a leitura do artigo específico sobre o tema no site.
Paternidade socioafetiva
A paternidade socioafetiva foi oficialmente reconhecida em 2006 na IV Jornada de Direito Civil, com a aprovação do Enunciado n. 339 CJF/STJ “a parentalidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho.”
Ademais, o Supremo Tribunal Federal, firmou tese quanto ao tema, por meio do Informativo n. 840, ao afirmar que “a paternidade socioafetiva declarada em registro ou não, não impede o reconhecimento de vínculo de filiação, concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
Deste modo, em razão do reconhecimento de nova estrutura de família, passou-se a dar maior importância aos laços afetivos. Com essa nova manifestação familiar, nasce a chamada filiação socioafetiva.
A possibilidade de filiação não apenas genética, se caracteriza, conforme bem colocado por Rolf Madaleno, levando em conta que não há como existir uma filiação biológica sem ser afetiva, uma vez que conforme preceitua o Código Civil em seus artigos 1.634 e 1.690, no momento que o filho é acolhido, por meio do afeto, os pais assumem suas funções inerentes ao poder familiar.
Portanto, diante da conhecida frase “pai é quem cria”, há situações em que a filiação é construída com o passar do tempo com base na socioafetividade, sendo que tal reconhecimento visa inclusive o melhor interesse da criança e do adolescente, ao se tratar de um vínculo do coração, que deve ser igualmente reconhecido como o vínculo biológico.
As formas de reconhecimento podem ser, judicial, pela chamada ação declaratória de paternidade socioafetiva ou administrativa junto ao registro público.
Multiparentalidade
A multiparentalidade é um fenômeno que decorre do reconhecimento da paternidade socioafetiva, bem como com o reconhecimento da união homoafetiva, que é aquela entre pessoas do mesmo sexo.
A inovação diz respeito a quebra do modelo binário de parentalidade, ou seja, pai e mãe, até então aplicado tanto para a parentalidade biológica como socioafetiva. Ocorre que se instaurou a questão relativa à possibilidade de pluralidade de pais e mães.
Assim, denomina-se multiparentalidade a vinculação não apenas consanguínea, mas socioafetiva de forma simultânea. Um exemplo para ficar mais claro, é o caso de padrastos ou madrastas, que fizeram o papel de criação e tem a intenção de constarem no registro civil também, junto dos pais biológicos.
O fato é que não há na legislação previsão em relação a possibilidade de multiparentalidade, sendo que ficou a cargo da doutrina e da jurisprudência analisar seus aspectos e efeitos no ordenamento jurídico brasileiro. Muitos casos já chegaram ao judiciário, sendo positiva a sua inserção.
Assim, diante de um reconhecimento da multiparentalidade, o vínculo de filiação se da com todos ali envolvidos, sendo tanto os socioafetivos como os biológicos em igualdade. Os efeitos jurídicos deste reconhecimento se dão em relação a todos, de forma simultânea e recíproca, como é o caso do dever de alimentar, direito sucessório e também a pensão por morte.
O reconhecimento da filiação, no âmbito da multiparentalidade, foi inclusive objeto de Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça no ano de 2017, ao admitir o reconhecimento da multiparentalidade no cartório de registro civil. Na sequência, em 2019, houve alteração no referido provimento no intuito de estabelecer diretrizes para tanto, com o advento do Provimento 83.
Ademais, importante posicionamento foi emanado pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do Tema 622 de repercussão geral “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Portanto, ainda carente de legislação específica, a multiparentalidade tem ganhado força no intuito de figurar como nova forma de manifestação familiar, sendo também uma forma de vínculo de filiação.
Considerações finais
De forma a resumir o que foi acima analisado, a filiação caracteriza-se por ser uma relação jurídica que se dá pela vinculação biológica ou socioafetiva entre ascendente e descendente. Pode ter origem matrimonial ou não, sendo que na matrimonial há a chamada presunção relativa de filiação.
Há duas formas de reconhecimento previstas na legislação. A primeira chamada de voluntária, que como o próprio nome já refere, é aquela realizada de maneira espontânea pelo pai ou mãe. Por outro lado, a forma judicial realizada diante de uma ação de investigação de paternidade ou maternidade, demanda a produção de provas ou mesmo um acordo diante das provas já presentes no processo e do dialogo das partes.
A filiação gera efeitos, sendo o principal deles o poder familiar e a responsabilidade como a guarda, dever de alimentar e efeitos sucessórios como a herança e pensão por morte.
De forma inovadora, temos o reconhecimento da chamada paternidade socioafetiva, sendo o vínculo pelo afeto elevado a equiparação ao vínculo biológico. Por consequência surge a multiparentalidade, que pressupõe a pluralidade de pais ou mães, havendo vínculo biológico e socioafetivo reconhecido de forma simultânea. Este novo fenômeno no direito de família ainda necessita de regulamentação, sendo que até lá fica a cargo dos julgadores questões a eles apresentadas para apreciação.
Para saber mais ou em caso de dúvidas sobre o que foi acima analisado, fique à vontade para entrar em contato via chat!